O CABOUQUEIRO E A CIÊNCIA DA PEDRA

AS TROPAS

Aquela manhã preparava um dia de calor a sério, nem vento a norte, nem véu na Serra com direito a ver a ponta do Palácio da Pena. O Coutinho que era Bernardino já tinha no bandulho as sopas de cavalo cansado que a Judi Caracoleta lhe havia preparado. O descanso na noite tinha passado depressa e, na cabeça ainda zonza, martelava aquela conversa de ontem à noite na taberna. Dizia aquele fulano bem posto, que parece trabalha na fábrica nova de Mem Martins e lhe chamam “o caladinho”, porque nunca diz nada e de vez em quando sai-se com umas que a gente não percebe, que tinha começado uma guerra nas Áfricas e que os nossos tropas iam começar a ir para lá combater. O pessoal ficou todo de orelhas em pé e de roda dele, todos quisemos saber mais, mas ele, como era costume, ficou muito assustado a olhar para todos os lados e para a porta, pagou a rodada de “ciganas”, e pôs-se a andar.

Bem, o Coutinho que era Bernardino, com aquelas “marteladas” na cabeça, lá saiu de casa e a passar o Santo António, cruza o caminho com o Chico da Beloura que lhe fez a conversa do tempo… que vai estar muito calor, que as ovelhas estão cada vez mais gulosas, que assim, que assado… e o Coutinho que era Bernardino, lá ia arrojando o esqueleto até às pedreiras do Ti Miguel, com o peso da picareta e ao dependuro no cinto de couro, aquele que o Cagachuva lhe arranjou vai para cinco anos, ainda antes de se ajeitar com a Judi Caracoleta, (tomando o fio) o martelo de corte, o escopro de pedra e a marretinha, tudo que lhe fazia falta naquele dia, para aplicar, com toda a sabedoria, a sua arte. Não havia um único santo dia que o Coutinho que era Bernardino, com mais ou menos charretes ou ciganas na pança, não dissesse a alguém que;

«Eu sou cabouqueiro… eu tenho a ciência da pedra!»

(A solidão era rainha e, por isso, muitas vezes tinha que o dizer para a própria pedra ou para as ferramentas)

«Olha lá oh marretinha …(soluço) eu já te disse que tenho a ciência da pedra? (soluço)»

«E a marretinha: Sim, já me disseste!»

«E o Coutinho que era Bernardino continuava; Oh martelo de corte… (soluço) Eu já te disse que sou o melhor cabouqueiro da Abrunheira e arredores?»

«E o martelo de corte lhe dizia; Já, e muitas vezes. (continuava o martelo de corte) Oh Coutinho que és Bernardino, com o calor que está e porque as pedras não fogem, porque é que não vais à Ti Emília meter mais uma ou duas charretes no bucho? Assim refrescavas e davas descanso à gente.»

«E logo o Coutinho que era Bernardino; Olha, se calhar até é boa ideia.»

(CONTINUA)

Dicas: Charrete – Garrafa de mais ou menos 40 cl cheia de vinho tinto do barril; Cigana – A mesma coisa, mas a garrafa é de 33 cl; Marretinha – Marreta pequena para trabalhar pedra.

Autoria: Silvestre (SBF)

Sem comentários:

PORQUE NÃO SE CALAM?

PORQUE NÃO SE CALAM? São praticamente os mesmos, que há menos de dois meses, bradavam “aos céus” por medidas mais restritivas, fortes e ...