ENSINAMENTOS DO “BOTAS”

A mim, o que me sabia mesmo bem era o bitoque. Havia dias que escolhia outra coisa só para variar, nunca para substituir o bitoque. Sai um bitoque especial! Gritou o Marinho para a cozinha. Acompanhava com uma imperial especial de corrida tirada pelo António que, naquela 5ª feira, e desde que me sentei ao balcão há um quarto de hora, já discutiu com o Chico aí uma dúzia de vezes.

Ao meu lado direito, estava o Artur Caparica que continuava preocupado com a sensação de andar a ser seguido por um gajo de fato e chapéu de abas. No mesmo dia de manhã, sem ninguém por perto, tinha-me contado que, com um primo, estava a pensar dar o salto para França para não ir à tropa. Deu-me a entender ter a certeza de não querer ir para a Guerra e, a única solução, era pirar-se daqui para fora.

À luz daquela janela do terceiro andar, li no Diário de Notícias que, amanhã, num qualquer dia e mês de 1973 mas de certeza a uma 6ª feira, levantaria ferro do cais da Rocha Conde de Óbidos o navio “Niassa” com militares portugueses com destino a Moçambique. Acrescentava ainda a notícia que, "a defesa daquela parcela do território nacional, como o iam fazer estes valorosos soldados, sargentos e oficiais, era um desígnio patriótico a que nenhum português se pode furtar”.

Os sucessores do “botas” continuavam fiéis aos seus ensinamentos.

Na 6ª feira o Caparica não apareceu ao trabalho e o mesmo aconteceu na semana seguinte. Da janela do terceiro andar, olhando para Cacilhas e Almada, tentava imaginar o que lhe teria acontecido. Estará na cidade luz? Terá corrido tudo bem?

Verão de 2010 longe daquela janela do terceiro. «De dentro dum Mercedes 280, saiu o tal gajo de fato e chapéu, agarrou-me e atirou-me para o banco de trás onde estava outro. Arrancaram em velocidade moderada, subiram a rua do Alecrim, viraram à direita para o Chiado e meteram pela rua António Maria Cardoso. Percebi que estava na pide. Perguntas e mais perguntas, sem dormir, bom, o resto já se sabe. Pareceu-me que se passou dois dias e Caxias a seguir. Seis meses depois assentei praça e mais sete meses, estava na Guiné. Foi uma mina anti-pessoal e um trambolhão na vida.»

Era quase uma hora e o “Califórnia” estava a encher. Ao balcão já não havia lugares vagos e as mesas estavam todas ocupadas.

(Nomes e situações ficcionadas)

Silvestre Félix

Sem comentários:

PORQUE NÃO SE CALAM?

PORQUE NÃO SE CALAM? São praticamente os mesmos, que há menos de dois meses, bradavam “aos céus” por medidas mais restritivas, fortes e ...