HINO IBÉRICO…


Pela janela daquele terceiro andar conseguia ver o mundo.

Via, como tantas outras vezes já disse, o Tejo desde a ponte até à margem do Montijo e Alcochete. Na correria desalmada das marés, enchentes ou vazantes, acompanhava o vai e vem dos cacilheiros, um ou outro grande petroleiro arranjando direção para se enfiar numa das docas secas da Margueira ou esperando, quietinho, ao largo no grande Mar da Palha pelo lado esquerdo do meu ângulo de visão, ainda uma ou outra vela banda duma velha falua ou de simples bote pesqueiro na chegada ao cais.

Conseguia ver, daquela janela do terceiro andar, o ajuntamento desembocado pelos chegados de comboio e que contavam subir a colina pela do Alecrim de amarelo ou então tomarem lugar no 22, 44, 45 ou 8 da Carris para o miolo da Capital. Vi, porque ainda estava na janela do terceiro andar, os protagonistas da Revolução. A multidão cada vez engrossava mais e os militares entravam na praça vindos da rua Bernardino Costa e Arsenal. O meu mundo, naquele dia e visto da janela do terceiro andar, era da cor da vida, da esperança. Os vivas de apoio invadiram o terreiro ao cais e ascenderam ao Camões e ao Chiado com a velocidade de um sopro porque eu vi e senti desde a janela daquele terceiro andar.

O cais do Sodré e da Ribeira foram testemunhas do que consegui ver da janela daquele terceiro andar. Tudo ia ser possível e não voltava a ser preciso forrar a capa dos livros e esconder a primeira página do vespertino “A República”. Os cravos, ainda naquele dia, iam nascer pelas espingardas e a “Grândola Vila Morena” do Zeca Afonso ia ser rainha das cantorias da Liberdade e muito tempo depois contado em anos, seria hino revolucionário cantado em toda a Península Ibérica, desde o parlamento no Palácio de São Bento às manifestações nas ruas de Madrid.

Silvestre Félix

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