Da janela do terceiro andar conseguia ver o mundo e o céu.
Também via o “escondidinho” e, movendo os maxilares em seco, saboreava a boa
bifana. A toda a hora ouvia o pregão do cauteleiro e o premiado número da “Casa
da Sorte”. Daquela janela encarava a porta do “Bensaúde” e, na outra margem, a
doca seca da “Lisnave”. Os cacilheiros, as faluas e as fragatas mostravam-se
num vai e vem sem fim. Pelo lado dos Remolares apareciam os carregadores da
“ribeira” com os hortícolas coloridos e as varinas com os pescados de fresco na
costa que ainda era nossa. E as vieirinhas do “Porto de Abrigo”? Do terceiro
andar, à janela, enfrentava os estendais de roupa a tapar as vistas para as
águas-furtadas. E o digestivo do Brithis que o careca e simpático Oliveira
servia com rigor minimalista? E o gravateiro chinês, e o engraxador do
Califórnia e o paleio do António ao mesmo tempo que trocava as mãos com o bife
à casa e as lulas recheadas? Lá, do terceiro andar, mesmo que não estivesse à
janela, adivinhava as tretas atiradas pelo Man’el porteiro metido naquela
fardeta cinzenta com direito a boné à polícia de pala em rijo cartão forrado.
Sempre queixoso como se toda a gente lhe devesse. Sempre o pior parceiro para a
“sueca” no armazém, lá, no terceiro andar, no mesmo da minha janela. O Vicente,
eu, o Catarino e o Nunes “babávamos” pelo carvoeiro e as sardinhas assadas. As
melhores. E mais tarde, porque antes era menu caro p’ra curta féria, o Rio
Grande e o frango assado no espeto e o tinto do Cartaxo também viria a fazer parte
do roteiro. Debaixo da do Alecrim, corria a Nova do Carvalho que só acordava lá
para a hora de almoço com os neons hesitantes. Os marujos e os magalas sempre
animavam a noite e sonhavam com amores perdidos numa enxerga de quarto de
lavatório e bidé avulso na pensão contratada.
De braços cruzados no parapeito conseguia ver, de olhos
fechados, o outro lado da cidade. O cheiro a combustível e o sonoro das
turbinas dos B 747, B 707, B 727, DC 10, etc., etc., desmultiplicando no fundo
da pista. O Castelo Branco que mal sabia que outro, muitos anos mais tarde, não
acrescentava pergaminhos à graça com nome de digna cidade beirã, com toda a
sabedoria do muito tempo contado em anos, lá desenrascava a carta de porte do
cliente mais exigente. Em modos de sono primário, a partir da janela do
terceiro andar, sentia o piso irregular, que sempre me pareceu estar ao
contrário, daquele terminal do edifício dezassete. O Nelson do Aguinaldo desalfandegava
e queria sempre o maldito BRI que ia e vinha deduzida a cota para a próxima. O
“metro” até ao Areeiro e no primeiro andar do 8 ou 44 no verde da “Carris”. De
lá, do terceiro andar bem perto do Tejo a horas certas do relógio da esquina do
Duque da Terceira e do outro, do “Brithis Bar”, que anda ao contrário, via a
escadaria e a fachada dos anos trinta. Subindo, era por ali que entrava,
passava pela tabacaria arrastando o vício num pacote de nicotina e lá seguia o
caminho e os tapetes, as malas, e, mais à frente, o hangar, as paletes e os
contentores e sempre, até hoje, como se lá estivessem, os saudosos cheirinhos e
barulhinhos.
De qualquer janela dum terceiro andar podia, fechando os
olhos, sentir o cheiro de África e da terra moçambicana quando a pista de
Mavalane me recebeu pela primeira vez. Muito provavelmente porque o Tejo me
guiou pelo ar como se navegando fosse pela frente de Belém e dos Jerónimos e
saísse pela mesma barra dos antigos navegadores. Podia ter sido, só não fui
conquistador e, antes, conquistado.
Naquele
tempo não sabia mas, a Lusofonia, era, e é, o caminho.
Mesmo duma simples janela dum terceiro andar do Cais do Sodré
donde via tudo e mais alguma coisa, em mim morava esperança e crença no que aí
havia de vir mas, como se percebe, nunca imaginaria ver uma parada militarista em pose prussiana desfilando
pela Ribeira das Naus e formar em conjuntos quadrangulares no Terreiro do Paço.
Nestes tempos de agora, a tribuna de honra continua a estar numa das alas da
Praça mas, a conquista, bem cultivada em laboratório e, ignorando o equestre D.
José, traveste-se e apresenta-se de escuro fato, gravata e pasta na mão.
Silvestre Félix
(Fotos: Imagens google)
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