Linha de Sintra

Aquela chiadeira das travagens perturba o sono viciado. Não consigo controlar, mesmo em pé que acontece muitas vezes, assim que entro no comboio cai um peso no sobrolho e os olhos tendem a fechar-se. Uma boa parte da vida incluiu a rotina de sono no comboio da linha de Sintra, uma vez de manhã e outra vez ao fim do dia, quando tinha, porque algumas vezes já não era fim mas princípio do outro. Estação de Sintra e do Rossio, partes do meu caminho de vida feita em trajectos bons e maus, conforme o tempo passado pelos anos do destino. Uma boa parte da vida partilhei-a em sonos viciados com magotes de gente. Todos os dias os mesmos magotes e o sono vinha sempre, companheiros de viagem e de sono dormido num vício impossível de controlar.


Naqueles sonos sonhados sempre com o click.... click ... o bilhete por favor! Que interrompe o percurso destinado à partilha com magotes de gente que são parceiros e parceiras de cama improvisada e inventada pela imaginação fértil dum cidadão qualquer. Muitos dias do meu tempo contado em mais de duas décadas de vida, o sono mais apetitoso e retemperador foi o do comboio da linha de Sintra testemunhado por magostes de gente companheiro e companheira de viagem com um semblante finalmente mais aberto, com um sorriso a chegar, ainda com medo mas a "Grândola Vila Morena" e o "E Depois do Adeus" já tinham passado na telefonia lá de casa, e, nas ruas, nas avenidas, nas praças, aqui e no País inteiro, tal e qual como no comboio da linha de Sintra, já tinham estado magotes de gente festejando a Liberdade.


Assim que entro no comboio, mais minuto menos minuto, os olhos fecham-se e o sono é verdade. E lá vem o sonho outra vez, no comboio o sonho é sempre bom, muito bom, os protagonistas são sempre boas pessoas, os colegas de trabalho os melhores do mundo, a guerra colonial vai acabar e nós e os colonizados ficamos todos muitos felizes e eu já não tenho que ir pr'a tropa, vamos pr'a CEE e o nosso País vai ficar com o mesmo nível de vida, os nossos políticos vão governar bem o nosso País, e... estou a chegar a Sintra, o barulho das agulhas à saída do túnel acordam-me, como venho do lado esquerdo, sempre que posso é o lado que escolho, vejo lá no cimo um bocado do Castelo dos Mouros e volto à realidade que neste caso é ir beber a bica do costume ao Cyntia, fazer tempo para a hora da camioneta que me levará a casa por hoje, porque amanhã o sobrolho cai, os olhos fecham-se e caio no retemperador sono que me levará outra vez ao sonho bom. Ainda me resta alguma esperança.

Zambi

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